Testemunho

“O sector das águas fideliza as pessoas” – Manuel Carrilho Alvarinho

A propósito da celebração do Dia Mundial da Água, a 22 de Março, entrevistámos Manuel Carrilho Alvarinho, responsável da Aquashare, rede moçambicana de profissionais do sector das águas.

Começo por pedir-lhe que nos fale da associação que dirige…

A associação Aquashare é uma rede de profissionais do sector das águas que nasceu há cerca de quatro anos. No sector das águas as coisas acontecem essencialmente na instituições governamentais, a vários níveis. À medida que o tempo foi correndo, percebemos que os profissionais, os académicos, não tinham uma voz, as suas opiniões eram sempre vistas num contexto muito formal, na linha de pensamento da instituição onde a pessoa está a trabalhar. A Aquashare preenche um vazio, pois não havia nenhuma organização que pudesse acomodar uma participação mais activa dos profissionais do sector, dos académicos, fora do contexto das instituições formais. Julgo que isto está no contexto do crescimento da Sociedade Civil em Moçambique. O sector das águas fideliza, por qualquer razão, as pessoas. As pessoas que trabalham neste sector já o fazem há 20 anos. Não quer dizer que não há a passagem de gente do sector público para o privado mas o que está a acontecer é que o sector das águas não perde a pessoa, porque mesmo no privado essa pessoa está a trabalhar para o sector das águas. Há um ambiente de fidelização, de ser parte de alguma coisa, que a Aquashare foi dar corpo. Nós queremos criar uma oportunidade para que os profissionais falem à vontade, sem estar no contexto das instituições formais, das linhas de pensamento do Governo e, um aspecto importante, queremos fazer a ponte entre jovens profissionais e os seniores. Este é um aspecto que funciona pouco em Moçambique, não há passagem de memória institucional, os técnicos vão subindo na carreira e desaparecem, fazem outras coisas, ou reformam-se, e não há uma transferência para os jovens profissionais. Os seniores estão em posições de chefia e não estão facilmente acessíveis aos jovens profissionais.

A Aquashare tem algum poder de intervenção – na regulação do sector, por exemplo? Influenciam as políticas públicas no sector das águas?

Nós queremos influenciar as políticas públicas e estamos a começar a ser respeitados. Organizámos várias conferências em que o ministro da tutela é sempre envolvido, as instituições-chave do sector acabam se envolvendo directa ou indirectamente na Aquashare, ou são sócias, ou os seus quadros são sócios individuais, é um tecido que permeia várias instituições porque os quadros mais activos da Aquashare acabam tendo um papel importante em diferentes instituições, FIPAG, DNA, CRA, ARA SUL…nós queremos contribuir nos esforços do Governo, mas pondo o nosso ponto de vista, que não tem exactamente que coincidir com as maneiras de pensar, os projectos e os objectivos do Governo, queremos dar voz ao profissional das águas, sempre dentro dos processos formais, e por isso fazemos as nossas actividades sempre em sintonia, informando o ministro de tutela, e as instituições-chave sobre que conferências vamos fazer, que temas vamos tratar, e eles contribuem para esse debate. Não queremos ser só uma voz dissonante, queremos ampliar, aumentar, ser uma mais-valia. Há dois anos tivemos uma conferência internacional aberta pelo Primeiro Ministro, tivemos centenas de pessoas (nacionais e estrangeiras) a participar. É sempre no contexto de aumentar a capacidade de conhecimento dos quadros do sector. A gestão do conhecimento é o nosso assunto principal, transmitir as novas tecnologias,  o que há de novo no mundo, coisas interessantes que estão a passar-se no nosso país, pô-las à luz, queremos que os nossos técnicos estejam mais formados, melhor informados, para terem um efeito de transformação, de influência, a um nível oficial.

Pode falar de dados do sector em Moçambique, nos últimos dez anos?

Aumentamos a cobertura significativamente nos últimos dez anos, tanto no meio rural como nas cidades. O assunto aqui é, também, a sustentabilidade. O país tem estado a fazer um grande esforço, a fazer investimentos para aumentar a cobertura, acho que devíamos ter aumentado ainda mais do que já conseguimos…mas agora vou falar mais das cidades. Nas cidades, por exemplo, aqui em Maputo, os centros distribuidores de Belo Horizonte,  de Matola Rio, de Tsalala e Hulene não existiam há 6/7 anos. Aumentou-se muito a rede, e as ligações domiciliárias aumentaram muito e não temos água para pôr nas casas das pessoas. Temos algum problema na maneira como estamos a pensar os projectos. Os projectos de capacidade do sistema levam tempo a concretizar. Há 20 anos que andamos a tentar financiar a nova barragem da Moamba. Enquanto essa barragem não se constrói, vamos buscar água a Corumana, a 100 km. O reforço da capacidade dos sistemas das grandes cidades é muito caro,  envolve grandes obras e leva muitos anos. A nossa rede de distribuição cresceu e baixamos o custo da ligação. Há dez anos Maputo tinha menos de  100 000 ligações, agora temos 250 000, e esses 150 000 adicionais foram todos para a periferia. No CRA (Conselho de Regulação de Águas) mexemos na estrutura tarifária para criar escalões que são acessíveis a grupos de baixa renda e isto deu uma explosão. O resultado é que agora não há água, e só daqui a uns três anos é que conseguimos que a água da Corumana chegue ao sistema de Maputo. Há aqui problemas de crescimento que têm que ser melhor programados, planeados. O segundo problema mais sério é que aumentamos muita infra-estrutura, o que fica mais complicado não é construir nova rede, é manter aquela que foi construída…este é o ponto em que estamos, em que a gestão e a manutenção de infra-estruturas estão a ser um desafio.

 Há observadores que apontam de tempos em tempos o interesse de corporações em controlar o acesso à água. O que nos diz a este respeito e como é que acha que um país como Moçambique pode posicionar-se,  assumindo como verdadeiras essas suposições?

A água é um recurso precioso, como se diz. Talvez só 1% de toda água que existe é aproveitável. É um assunto que deve ser tratado cada vez mais globalmente. Moçambique não pode fazer, por exemplo, uma barragem no Zambeze sem que os nove países em que o Zambeze atravessa ou é ribeirinho sejam envolvidos. O Malawi não pode sozinho decidir que  vai agora transportar barcaças pelo Rio Zambeze, queria um porto fluvial, foi um assunto muito delicado, porque o presidente do Malawi decidiu unilateralmente e montou um porto fluvial pelo Chire e Zambeze e achou que simplesmente íamos deixar passar as barcaças deles. Estes assuntos deixaram de ser tratados só por um país. É um assunto influenciado por regras internacionais, senão temos países em guerras de água. Aliás, há quem diga que o conflito na Palestina tem a ver com guerra sobre o Rio Jordão e a água na Palestina. Já houve conflitos em África à volta do Rio Nilo. Isto é uma matéria que deve ser tratada com muito cuidado e Moçambique está numa posição vulnerável, porque está a jusante, ou seja, os principais rios vêm dos vizinhos, e nós temos que nos preparar com conhecimento, com capacidade, para discutir taco a taco com os vizinhos. A água está a ser vista, por outro lado, a nível de mercado como commodity, como um bem económico e há já movimento internacionais, fundos e nas principais bolsas para controlar as grandes massas de água, existem os que por vezes chamamos “planos malucos”, de um grande tubo que sairá de África, cruzará o Mar Vermelho e vai para a Arábia Saudita, para pôr água na Península Arábica. Este é um assunto polémico,  mas penso que no nosso caso temos a vantagem de estar inseridos na SADC e temos instrumentos, existe um protocolo sobre rios compartilhados e no nosso país as águas não são privadas, existem portanto alguns mecanismos que podem evitar isso. Mas esses fenómenos há, toda a indústria da água engarrafada, há iniciativas das multinacionais no sentido de capturar a água. Está a acontecer outro fenómeno que é estar a ser mais barato dessalinizar a água do mar. A pressão para ter água de boa qualidade, captada nos lagos ou nos montes, que não esteja poluída…mesmo a água mineral, este conceito de água mineral vai acabar, porque a maior parte das águas que se vendem aí são da torneira, fazem uma super filtração e adicionam uns minerais, uns sais…há alguns anos um país fez um estudo e concluiu que 70% das águas era da torneira. E essa água é caríssima, se compararmos com a água tirada da torneira.

Em Moçambique várias entidades actuam para fazer chegar a água às pessoas. Acha que essa divisão de responsabilidades optimiza o funcionamento do sector?

Há o princípio de separação de funções para promover a transparência e a prestação de contas. Quem controla o armazém não autoriza o uso de materiais. Em contabilidade quem é contabilista não autoriza pagamentos. No passado o Ministério fazia tudo. O Director da empresa de águas relacionava-se directamente com ele. Não havia fiscalização. O Ministério também era regulador. Quando as coisas andavam mal ninguém sabia quem é o responsável.  Agora o FIPAG constrói, e depois entrega a um terceiro para explorar, as Águas da Região de Maputo é que exploram, mas o FIPAG continua dono das instalações.  E há um regulador. Desse modo há responsabilização.

Temos duas equipas a jogar e o árbitro, que é o CRA. Esta distância que se cria é muito importante.

De um modo geral quais são as expectativas neste sector?

As Nações Unidas declararam há uma vintena de anos o dia 22 de Março como o Dia Mundial da Água e todos os anos escolhe um tema. Este ano escolheu o tema a “A Água e o Emprego”. Como é que a força de trabalho tem um papel importante na melhoria da situação da água e como é que o sector cria oportunidades de emprego? Este é um assunto pouco discutido. No período socialista havia um censo sobre as necessidades de pessoal neste sector. Quando iniciámos a liberalização começamos a perder de vista o que é de facto a massa laboral para este sector. Sentimos que este Dia Mundial da Água é um alerta para preocuparmos de novo. Que oportunidades estamos a criar em termos de empregos? Os jovens profissionais? Como é que organizamos estágios?Como é que ligamos este assunto com o empreendedorismo? Há grandes necessidades e há pouca capacidade produtiva. O sector público tem que criar incentivos, mas como é que enquadramos as pequenas e médias empresas no sector?

Quais são as oportunidades que o sector cria para o aparecimento de um corpo de empresas que vão realizar actividades?

Queremos divulgar as potencialidades, levantar o problema e ver se isto dá origem a alguma iniciativa mais formal por parte das instituições do sector das águas. Estamos a lançar uma semente.

Para as necessidades do país neste momento…a oferta está acompanhar, em termos de profissionais?

O problema está exactamente no facto de não haver uma avaliação às oportunidades para os recém-formados. Por outro lado, está a haver gente formada que sabe muito pouco, e isso parece cada vez pior. Formam-se engenheiros que parecem não ter tido nada prático. As instituições têm praticamente que formar novos quadros. Não há ligação entre a teoria e a realidade. Não houve tempo de laboratório, de ensaios, de oficina, foi tudo minimizado. Eu próprio terminei o curso de engenharia em 1978 e tínhamos horas e horas  de laboratório, tínhamos ensaios de materiais, ensaios de betão. Agora estamos a receber pessoas que não tiveram essa experiência. Precisamos de institutos para formar técnicos. Uma vez tive um técnico que estava encostado a uma bomba [de água] e perguntou onde estava a bomba. É penoso dizer isto mas nas vertentes tecnológicas estamos atrasados. Temos um outro problema que tem que ver com as tecnologias de informação e comunicação. O primeiro mundo não é quem mais precisa das tecnologias de informação e comunicação, nós é que precisamos de queimar etapas. A rede de telefones fixos nesses países já está estabelecida. Onde é que houve mais crescimento no uso de telemóveis? Foi no Terceiro Mundo. A mesma coisa com os bancos. No Primeiro Mundo há bancos por todo o lado e aqui nós precisamos de mobile banking. No mundo inteiro onde é que mais se está a desenvolver o banco móvel? É no continente africano.Temos que saber queimar etapas, estar à frente na área de tecnologias. Dou mais um exemplo, na área de águas. Há os chamados smart meters para os contadores de água, que não precisam de passar o leitor. Simplesmente o carro passa e comunica com o contador e recolhe toda a informação. Estávamos aqui a discutir que esse método é caro e de repente veio um miúdo holandês que descobriu que basta tirar fotografias ao contador e mandar para uma aplicação [o que se está a fazer em Moamba] e ela faz o reconhecimento do número, vem com GPS e sabe-se qual é aquela pessoa, e imediatamente emite-se a factura.

Por um lado a formação técnico-profissional é necessária mas é preciso atrevermo-nos a ir mais à frente em relação às soluções do Primeiro Mundo.

Uma recomendação para os jovens candidatos a emprego?  

Há necessidades que não estão a ser satisfeitas pelas soluções convencionais. No subúrbios, por exemplo, não há nomes de ruas nem números. Como é que se resolve este problema? Como é que se identifica este consumidor? Os desafios de desenvolvimento, urbanização precária, gente mais pobre, se calhar a inovação tecnológica consegue ter produtos para servir esta gente, e os jovens que conseguirem mobilizar isto vão ter emprego assegurado, porque vão estar a dar resposta a uma coisa que não existe.