Testemunho

“Enviei o meu CV e passei em todos os testes” – Ricardo Pinto Jorge

Modelo

Num sexto andar numa das mais longas avenidas da cidade, telas nas paredes e no chão, trabalhos semi-acabados, tintas, lápis, tesouras, copos vazios, aviões miniaturados sobre um móvel, livros com instruções de voo e uma amálgama de objectos estão espalhados na sala.

Ricardo Pinto Jorge é artista plástico e piloto, duas paixões que coexistem harmonicamente.

Onde é que começaste a estudar?

Estudei no Arco-íris até a 5.ª classe e foram tempos extremamente interessantes, a nível de práticas de desporto e arte. Jogava vídeojogos e acho que essa foi a minha primeira exposição com cores. Por volta de 1998 mudei-me para a  Escola Internacional, e os primeiros meses foram assustadores. Tinha tido amigos durante cinco anos e de repente não os veria com a mesma frequência. Muitos foram estudar num colégio e eu pensava que iria com eles. Em Janeiro os meus pais comunicam-me que vou estudar na Escola Internacional. No primeiro dia estás a entrar no portão da escola e procuras alguém que conheces, e não vês ninguém. Eu tinha tido contacto com artes na escola primária, o nosso professor era o Amável [músico] e naquele tempo tínhamos que ter uns cadernos coloridos para fazer trabalhos. Nessa altura era como uma disciplina qualquer, sem merecer muita atenção. Na Escola Internacional as disciplinas eram iguais para todos e na 6.ª classe já podias escolher. Uma vez saímos a andar por umas salas e como eu não falava Inglês, segui os meus novos companheiros, e fomos parar a uma sala com escultura, pintura, desenhos, e embora tivesse visto em casa e em outros lugares, aquele momento foi esmagador; os meus companheiros não tinham uma boa impressão do professor mas para mim pouco importava, acabei por interessar-me pelas aulas dele e fui então aprendendo inglês e a integrar-me na escola. Na 8.ª classe tinha três amigos, e como nas escolas criam-se grupos por interesse, eles tinham em comum gostarem de fazer sketches nos seus cadernos, e essa foi a primeira vez que vi grafíti. Eram muito talentosos e nas aulas eles faziam os seus desenhos, sendo que cada um tinha um estilo. Mais atrás, eu gostava de banda desenhada. Como não era capaz de desenhar, comecei a batotar, fazia decalques. Tinha deixado de ir às aulas de arte na escola porque julgava-me incapaz. Ao mesmo tempo havia o interesse em pilotagem, desde muito pequeno. Adoro nuvens, o ceú, e se pudesse seria astronauta, mas não sei se tenho cérebro para isso. O meu pai é piloto e lembro-me de vê-lo chegar a casa com a farda de piloto, depois tive a sorte de viajar frequentemente para vários sítios. Com cinco anos entrei pela primeira vez num cockpit, e uma vez mais as cores impressionaram-me. No cockpit há um botão para teste de luz e o indicador de que o sistema está bom é uma luz, e quando uma criança entra num cockpit para o comandante explicar como tudo funciona, a primeira coisa que ele faz é acender o botão para as luzes, é um momento deslumbrante.

Quando deixaste as disciplinas de arte já tinhas na cabeça que querias ser piloto?

Não sabia que podia ter uma carreira como artista e estava certo de que podia ser piloto. Decidi-me pelas Ciências Físicas e Matemáticas e como não era um excelente estudante em Matemática, voltei-me para a Física, que é uma disciplina essencial na aviação. Acabei a 12.ª e continuei a fazer grafíti até ao ponto de estar farto de desenhar no papel e afixar nas paredes do meu quarto. A minha casa agora é uma versão nova do meu quarto quando era mais novo. Não me lembro exactamente em que momento mas começou a ocorrer-me  a ideia de fazer grafíti na rua, naquele tempo diziam bomb the wall, via muitos documentários e quando voltava para casa fazia planos sobre como comprar um capuz preto e calças e t-shirts pretas, mas tinha muito receio porque era um acto ilegal e não me queria meter numa situação em que os meus pais iriam buscar-me na esquadra por actos ilegais. Decidi que começaria a pintar a minha roupa. Pintava jeans, t-shirts, bonés, pastas, tudo o que tinha. Em 2005 candidatei-me para ir estudar e nessa altura tinha começado a dançar num grupo chamado Moz Dance, bem inserido no meio da cultura Hip Hop. Os cinco elementos [da cultura Hip Hop] estavam lá. Fiz alguns vídeos com a Lizha James e pintei uma parede na Coop, no que era o santuário do grafíti em Maputo. Comecei nessa altura a pintar calças para a Lizha, camisetes para  o Nasser e o pessoal da Moz Dance. Quando sai da Moz Dance fiz outros amigos e entrei para um outro grupo de dança. Havia um filme You Got Served e uma febre na época, e eu gostava de outros filmes mais antigos de Hip Hop, os Wild Style, Beat Street, e havia muito grafíti, eu queria emular aquilo. Estava à espera dos resultados da universidade para onde me tinha candidatado e fui admitido mas não consegui o visto. Fiquei um ano a pintar, a dançar e a fazer mixs de Hip Hop. Os meus pais tiveram uma conversa comigo e tinham recomendado que além de piloto tivesse uma formação superior num curso que escolhesse. Estavam muito em voga os cursos de negócios e acabei por escolher Administração e Negócios para curso superior. Em 2007 concordámos que antes de iniciar o curso eu moraria em casa de uma família sul-africana, enquanto completava os A Levels [exames no fim do ensino secundário, no currículo do britânico]. Nessa altura ainda pintava e já tinha transformado aquilo num negócio, sempre a pedidos.

Apesar de não parecer, tenho uma paixão pela moda, em parte devido à cultura Hip Hop, a combinação de cores, os atacadores têm que ter cores opostas, as sapatilhas, e tudo isso, porque eu estava a pintar a minha roupa. Queria criar uma marca de roupa e já estava a pensar em como organizar tudo, queria criar uma espécie de Ecko moçambicana, tinha o business model, e criei a marca Stick Man, um bonequinho com umas sapatilhas e um colar e nessa altura só precisava de capital, achava que o meu curso poderia ajudar a encontrar equilíbrio para o meu projecto empresarial, por isso entrei em 2008 para a Universidade de Pretória para estudar Marketing. Estudaria Marketing e depois o curso de piloto. Chegou um tempo, entretanto, em que eu já não estava a gostar do que estava a fazer. Tinha uma ideia incorrecta do curso. Voltei para Maputo e fui directo para a aviação. Acredito em coincidências e quando regressei estava a haver um concurso do governo moçambicano para a formação de pilotos. Enviei o meu CV e fui às entrevistas, onde passei em todos os testes. Entrámos 30 alunos no curso e hoje estou a voar. No fim do curso tinha muito tempo livre e aproveitava para pintar. Em 2010 pintei umas 50 obras, além do envolvimento com design gráfico. Alguns amigos iam lá a casa e viam trabalhos na parede, e perguntavam-me porquê é que eu continuava a pô-los na parede, e num desses dias cá para os meus botões fiquei a pensar que aquilo podia prenunciar egoístas, mas por outro lado sendo honesto para mim mesmo via-me como uma pessoa livre de pretensões egoístas, de vez em quando sou demasiado introvertido, e pôr os meus trabalhos nas paredes de casa é uma tentativa de expor o trabalho ao crivo, meu e de outros. A minha intenção de ter os trabalhos na parede é a de ter um diálogo com as pessoas, bom ou mau, positivo ou negativo.

Com que propósito é que pintaste 50 quadros?

Pinto o que sinto, mas pinto mais vezes o que penso do que o que sinto. Não pinto necessariamente emoções. As vezes é o que estou a pensar ou o que os outros pensam. A minha primeira exposição [Mahikalogica] tentava reflectir isso, lógica e emoção, se podemos colocar dessa forma. Nós não aprendemos com só com ler e escrever, mas também com o corpo. No princípio queria ganhar dinheiro para apostar na empresa que pintava roupa, mas isso começou a mudar, já queria pintar quadros. Muita coisa mudou. Hoje os Gêmeos [artistas plásticos brasileiros] ganham muito bem pintando um mural, que talvez será destruído em 15 anos, mais do que ganhariam provavelmente com um trabalho exposto numa galeria.

A tua primeira exposição foi em 2011?

Pintava quadros de graffiti nessa altura e num evento do meu aniversário os meus amigos disseram-me “porque é que não fazes uma exposição se tens aqui tantos trabalhos?”. Olhei para eles com certo cepticismo, porque eu já só estava a pintar, porque o meu propósito de pintar para começar um negócio tinha desvanecido, estava focado apenas em criar arte e pilotar aviões. A exposição teve lugar na Associação Moçambicana de Fotografia.

Como é que te relacionavas com o grafíti?

Hoje ouves falar mais de street art. Nessa altura já conhecia o trabalho de Blek le Rat [artista francês precursor do grafíti] e do C215 [outro artista francês] e durante as minhas pesquisas vi um grafíti que era uma estampagem, o criador estampava uma imagem em vários sítios. Voltei a fazer decalque como fazia quando era mais novo. O que difere agora é que já não copio imagens como a do rato Mickey, fotografo nas ruas ou saco na internet e faço colagens. O que faço hoje é uma combinação de grafíti, design gráfico, fotografia e decalque.

Quais são os teus métodos para criação?

Eu fiz Tang Soo Do durante 10 anos e o meu crescimento foi influenciado pela disciplina das artes marciais. Na aviação aprendi também a organizar as minhas actividades. E vejo similaridades nas duas práticas. Há a questão de prever, visualizar eventos, num e outro caso. Procuro criar disposição para as várias circunstâncias em que me encontro. Na aviação tens procedimentos para todas as fases antes de iniciares a decolagem.

Inspiração e disciplina?

Se formos honestos connosco próprios podemos conseguir ter mais ou menos uma percepção do que podemos alcançar.  Se correr mais melhoro como atleta, se praticar mais melhoro o meu inglês. Existem coisas que eu sei que se fizer melhorarei exponencialmente. Para um artista profissional, talvez, há momentos de explosão, de criação intensa, mas por outro lado podes praticar a inspiração. Se tu desenhas todos os dias já tens a mão, precisas só de uma ideia. De muitas ideias  uma talvez sirva para qualquer coisa. Em 30 desenhos talvez um valerá a pena. O Picasso e o Hokusai, por exemplo, produziram várias dezenas e milhares de trabalhos. Numa colecção  de 100 trabalhos talvez encontrarás uma que te dislumbrará verdadeiramente. Tenho estado constantemente a criar.

Quais  são os artistas determinantes na tua criação?

Não consigo traçar uma linha sólida de influências mas, definitivamente, encontro em Da Vinci, Matisse, Bernini, Picasso, Naguib, Chichorro, C215, Banksy, Blek Le Rat e Hokusai alguns deles.

Como é que contactas com estes artistas?

Nunca tive uma educação disciplinada em arte, foi tudo baseado em pesquisas na internet, ligações atrás de ligações, cada artista ligava-me a outro. São várias as coisas que me inspiram, estamos  aqui a falar, por exemplo, de transporte em Moçambique, como é que está, o chapa que leva 30 pessoas quando devia levar 15. Conversas com amigos e desconhecidos e experiências, os meus sentidos captam informação que depois externalizo através do meu trabalho.

Há um artista com que desejavas particularmente de falar, se te fosse dada essa possibilidade?

Eu gostaria de conhecer o Naguib, por exemplo, mas não quero entrar numa de fã, de criar situações desconfortáveis para ambos. Tenciono conhecer muitos artistas mas não quero forçar nada. Em 2014 eu trabalhei no Azgo e nos bastidores tens a oportunidade de conhecer muitos artistas e o Sam The Kid, um dos meus rappers favoritos, estava nesse evento. Eu tinha conhecido o Milton Gulli, com quem falo, e ele conhecia o Sam. Ele apresentou-me o Sam e eu fiquei calado, disse-lhe apenas obrigado por fazeres música e fui-me embora, não sabia o que dizer. Eu tenho muitas perguntas para fazer ao Sam mas naquele momento não me ocorreu nada. Tento não criar demasiadas expectactivas sobre as pessoas.

Quais são as tuas ambições como artista e como piloto?

Gostaria de contribuir de alguma forma para que a arte em Moçambique tenha mais divulgação e apreciadores, em todas as suas manifestações. A arte tem que estar disponíveil para as pessoas a todos os níveis. Quando comecei a expor o meu trabalho, mesmo na ruas as pessoas diziam-me eu desenho, eu desenhava, eu tentei pintar, etc., eu gostaria que tivéssemos plataformas para as pessoas acederem à arte.

Adoro voar. Tenho uma paixão imensa pela disciplina no voo.  Na aviação temos uma grande atenção para a segurança, estamos constantemente a melhorar os procedimentos. A prática é uma constante superação de limites. Gostaria de continuar a voar em Moçambique, dispor as minhas habilidades a outros moçambicanos. Existem outras companhias com as quais gostaria de ter contactos, ter experiência, e eventualmente trabalhar, mas a minha intenção é continuar aqui, possivelmente em cinco ou dez anos tornar-me comandante de um avião de grande porte, talvez um Boeing, ou um Airbus.

Como artista gostaria de conhecer mais pessoas e aperfeiçoar a minha técnica, a minha expressão e continuar a incitar o diálogo.

O que é que recomendarias a um jovem estudante?

Os meus pais diziam sempre “quem corre por gosto não cansa”. Eu acordo para ir trabalhar e não me sinto forçado a fazer o que faço. Descobre o que gostas de fazer e aposta nisso. Mesmo em momentos de ansiedade, aplica- te no que gostas. Pesquisa, questiona, estuda, para a tua própria realização. É tudo sobre perguntas, sobre descobrir coisas novas. Volto para casa com a sensação de que cada dia é um passo para encontrar respostas. E tens que estar constantemente a pensar na situação em que te encontras e onde queres estar. Durante o treino para piloto um instrutor disse “nunca apontes  o nariz do teu avião para um sitío onde a tua mente não esteve”, acho que isso aplica-se para a vida, para as pessoas.