Testemunho

“O desemprego é dos problemas mais significativos nas sociedades modernas”

Pedro Martins é professor de Economia Aplicada na Queen Mary, Universidade de Londres, e estuda há muitos anos o mercado de trabalho, com dezenas de publicações em revistas especializadas. Entre 2011 e 2013 foi secretário de Estado do Emprego em Portugal. Esteve recentemente em Moçambique, para participar num seminário organizado pelo International Growth Centre, sobre o sector privado e a força laboral.

Começo por lhe pedir uma descrição da sua actividade como académico nas áreas ligadas ao mercado de trabalho e da experiência em diferentes países (e as distinções que faz entre países do Primeiro e do Terceiro Mundos nessas matérias).

O mundo do trabalho sempre me despertou grande interesse, sobretudo a partir da altura em que comecei a minha licenciatura, em meados dos anos 90.

O trabalho académico que tenho desenvolvido desde aí tem procurado compreender o funcionamento do mercado de trabalho em áreas como a determinação de salários, a evolução das contratações e separações, e os efeitos dos aspectos institucionais – legislação laboral, contratação colectiva, serviços (públicos) de emprego, etc. Os meus estudos são em geral empíricos e orientados para as políticas públicas. Em geral, aplico diferentes métodos econométricos a bases de dados de diferentes países com vista a fazer recomendações práticas para melhorar o desempenho dos mercados de trabalho.

Alguns destes estudos influenciaram o meu trabalho como secretário de Estado do Emprego em Portugal, entre 2011 e 2013. Durante esse período implementei várias reformas, como uma revisão do Código do Trabalho, a introdução de medidas activas de emprego, a descentralização da contratação colectiva, ou a modernização do Instituto do Emprego e Formação Profissional.

Sobre as diferenças que encontro entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, o principal contraste está na produtividade e, consequentemente, nas remunerações e outras condições de trabalho. Um trabalhador médio num país desenvolvido consegue produzir muito mais numa hora de trabalho que um trabalhador médio num país em desenvolvimento. Grande parte destas diferenças prendem-se com o contexto económico de cada país – mas uma parte também significativa resulta das políticas de emprego.

Como é que analisa, a nível global, as dinâmicas de emprego, e a evolução nos últimos anos? Que tendências é possível apontar neste momento? E que factores serão condicionantes?

Há diferenças grandes entre diferentes países. Em vários países desenvolvidos – como os EUA, o Reino Unido e a Alemanha –, os níveis de emprego crescem a ritmos significativos e parecem ter ultrapassado a grande recessão de 2008. Outros – como na Europa do Sul – ainda não. Por outro lado, entre os países em desenvolvimento, verifica-se actualmente uma desaceleração, como no caso da China, ou mesmo uma quebra, como no Brasil.

Um importante factor condicionante é a capacidade de cada país em implementar reformas estruturais apropriadas aos seus contextos. Estas reformas podem incluir vários aspectos: legislação laboral, serviços públicos de emprego, formação profissional, sistemas de informação, protecção social no desemprego, regulamentação de profissões, inspecções laborais, etc. Os países com melhores desempenhos nos seus mercados de trabalho em geral são aqueles que conseguem permanentemente aperfeiçoar as suas instituições, de forma a melhor promover o crescimento do emprego e dos salários.

O Fórum Económico Mundial publicou um relatório, “The Future of Jobs”, em que se fala da “Quarta Revolução Industrial” (desenvolvimentos nos domínio da inteligência artificial, nanotecnologia, genética, etc.) e das mudanças a nível de mão-de-obra e empresas…o que tem a dizer a respeito?

São desenvolvimentos muito importantes, que com certeza não deixarão de ter efeitos importantes também ao nível dos mercados de trabalho. Estas mudanças também sublinham a importância de ajustar permanentemente as instituições do mercado de trabalho aos contextos económicos. Como dizia Darwin, os organismos que têm mais sucesso não são necessariamente os mais desenvolvidos mas sim aqueles que se melhor adaptam a um ambiente em mutação permanente.

Lê-se com frequência, e não se trata de uma preocupação nova, um certo catastrofismo na forma como se olha para a robótica e os seus efeitos na mão-de-obra. Temos mesmo que estar assustados?

Penso que não. A robótica é uma força importantíssima para o aumento da produtividade das empresas e das economias. Poder produzir bens sofisticados a custos baixos e em grandes quantidades é um mecanismo fundamental para o aumento da prosperidade dos povos. Precisamos, no entanto, de modernizar também os mecanismos de redistribuição de rendimento – fala-se cada vez mais de “rendimentos básicos universais” nos países desenvolvidos, por exemplo, em que cada cidadão teria direito a uma prestação mensal independentemente dos seus outros rendimentos.

Precisamos também de promover cada vez mais a reconversão dos trabalhadores dos sectores em que a robotização cresce para outros sectores cujo crescimento é facilitado pela elevação dos níveis de produtividade (saúde, turismo, educação/formação, tecnologias de informação e comunicação, serviços às empresas, entretenimento, apoio a idosos, etc).

O desemprego é uma disfunção natural num sistema económico ou é resultado de erros de política pública?

Parte importante do desemprego em países desenvolvidos resulta do ciclo macroeconómico, nomeadamente de períodos de recessão associados a despedimentos e reduções de contratações. Outra componente significativa resulta do tempo necessário a qualquer pessoa encontrar um novo ou um primeiro emprego – o chamado desemprego friccional.

Por último, há ainda uma dimensão estrutural, cada vez mais significativa em alguns países, como na Europa do Sul, que resulta da perda de capital humano associado ao desemprego, de desajustamentos entre as qualificações produzidas pelo sistema de educação e as qualificações procuradas pelas empresas ou outras disfuncionalidades relacionadas com políticas públicas menos apropriadas, nomeadamente na área do emprego.

Em vários países em desenvolvimento, esta dimensão estrutural do desemprego pode resultar de legislações laborais desadequadas que estabelecem direitos aos trabalhadores que as empresas não têm condições de satisfazer.

 “Movimentos” como a “Geração à Rasca” em Portugal, “Los Indignados” em Espanha, as reivindicações na Tunísia (e ocorre-nos agora o jovem Bouazizi que se imolou exigindo melhores condições de vida) colocaram nos telejornais a questão da precariedade social e as consequências do desemprego (e suas implicações políticas). Quais são os custos sociais e políticos do desemprego, à luz dessas realidades que assistimos?

Eu vejo a precariedade e o desemprego como problemas diferentes, embora relacionados. A precariedade está muito relacionada não só com desemprego elevado (e a fragilidade da situação económica) mas também com enquadramentos legais que promovem, directa ou indirectamente, uma separação grande em termos de condições de trabalho entre dois ou mais tipos de trabalhadores – por exemplo entre aqueles que têm contratos de trabalho permanentes e todos os outros, nomeadamente os informais. Esta situação pode ter efeitos negativos tanto ao nível da equidade social como em relação à própria produtividade e crescimento da economia.

Em todo o caso, tanto o desemprego como a precariedade são dos problemas mais significativos com que as sociedades modernas se confrontam. Os decisores políticos devem prestar a maior atenção a estas questões e procurar com todo o afinco melhorar permanentemente as suas políticas económicas e de emprego. Isto passa não só por um acompanhamento “macro” destes problemas mas também grande atenção ao funcionamento concreto dos vários serviços públicos na área do emprego como em outras áreas que podem ajudar à dinamização da vida empresarial.

Ao fim deste período de observação em torno do emprego e das estatísticas em Moçambique, quais sãos  as principais conclusões?

Uma conclusão é sobre a importância de ser disponibilizada mais informação sobre o mercado de trabalho, incluindo as áreas da educação e formação. Mais informação permitiria melhores decisões, privadas e públicas, por exemplo, sobre os tipos de educação e formação a escolher e a promover. Mais informação permitiria também apoiar e acompanhar mais de perto o trabalho dos centros de emprego e formação. Mais informação permitiria ainda melhorar o ajustamento entre oferta e procura de trabalho, contribuindo para o aumento dos níveis de emprego e remunerações.

Ainda outra conclusão é que há uma elevada percentagem de trabalhadores que se inscrevem no portal (emprego.co.mz, objecto de uma pesquisa em curso) apesar de já estarem empregados (mais de 70%) bem como uma elevada percentagem de trabalhadores que se candidatam a empregos que requerem um nível de escolaridade inferior ao que eles detêm. Estes resultados pode indicar alguma insatisfação de muitos trabalhadores em relação aos seus empregos bem como algum desfasamento entre níveis de escolaridade e procura de qualificações por parte das empresas.

Existe aquela chamada de atenção muito comum “não se pode trabalhar sobre uma realidade que se desconhece”, o mesmo que dizer, no caso do mercado de trabalho, não se pode pensar em políticas de emprego sem se ter a real noção do que se passa…Moçambique tem hoje a informação de que necessita para actuar?

Penso que há áreas de informação estatística que seria bom continuar a desenvolver. Por exemplo, penso que seria muito útil a divulgação regular, trimestral ou semestralmente, das taxas de emprego, desemprego e de subemprego em cada província. Seria informação muito útil para o debate público e para a definição das melhores políticas económicas e de emprego.

Sobre portais de emprego e especificamente sobre o emprego.co.mz, quais as principais constatações?

Os portais de emprego são ferramentas potencialmente muito úteis para a promoção do bom funcionamento dos mercados de trabalho. Permitem ainda aos países em desenvolvimento, como Moçambique, darem saltos no seu crescimento, dispensando parcialmente formas intermédias de ajustamento, como os centros de emprego mais clássicos, baseados em estruturas físicas. Penso que o emprego.co.mz é um excelente exemplo de todas as potencialidades destes portais: põe em contacto, de forma rápida e rigorosa, as empresas que precisam de recrutar e os trabalhadores que procuram emprego, permitindo que os novos empregos sejam preenchidos mais rapidamente e com maior sustentabilidade.

O que é que um portal de emprego pode oferecer?

Além dos importantes serviços que já presta às empresas e aos trabalhadores, há um potencial interessante para o portal emprego.co.mz disponibilizar informação à opinião pública sobre a evolução do mercado de trabalho. Além disso, em coordenação com as entidades públicas e com outras entidades privadas, o portal poderia proporcionar informação adicional sobre ofertas de educação e de formação em diferentes áreas e zonas geográficas de Moçambique. O portal pode ainda disponibilizar informação anonimizada à comunidade científica nacional e internacional, para estudos mais específicos sobre o funcionamento do mercado de trabalho moçambicano que possam ter relevância para a definição de políticas públicas.

O que é que se pode esperar do mercado de trabalho moçambicano de um modo geral?

A economia moçambicana tem crescido a taxas muito elevadas nos últimos anos. No entanto, nem sempre este crescimento se tem traduzido num aumento significativo nas oportunidades de emprego. Esta situação relaciona-se em parte com a oferta de qualificações por parte do sistema de educação e formação. Espero que estes obstáculos sejam ultrapassados e que tanto a economia como os empregos em Moçambique possam crescer a níveis elevados nos próximos anos.

Quais  são os maiores desafios neste momento? Que tipo de intervenções do governo seriam efectivas na criação de postos de trabalho?

Penso que há várias áreas que oferecem potencial e em que o Governo moçambicano está a trabalhar. Desde já, criar um ambiente empresarial propício ao aparecimento de novas actividades económicas e o aumento da concorrência e do investimento (nacional e estrangeiro). Ao nível da política de emprego, a melhoria da quantidade e qualidade da formação profissional – em parceria com entidades privadas – poderá trazer grandes vantagens. Outra área com potencial poderia passar pela simplificação da legislação laboral, tornando mais simples e menos dispendiosa a contratação de trabalhadores por parte das empresas.

Observadores consideram que, no caso moçambicano, se não houver uma adequação do sistema de educação às necessidades do país, teremos muitos problemas de emprego (e desenvolvimento) no futuro. A educação técnico-profissional é a alternativa?

Penso que há espaço em todos os países para a coexistência de diferentes tipos de educação e formação. Ao mesmo tempo, é sempre possível fazer melhor – por exemplo, melhorar o ajustamento das ofertas de educação e formação às áreas em que há mais procura por parte das empresas. Importa que o sistema de educação e formação seja não só permeável como até activo em moldar-se às necessidades do sector privado. Nesse sentido, a educação (e a formação) técnico-profissional pode desempenhar um papel muito importante, sobretudo quando também envolve os parceiros sociais. Veja-se, a título de exemplo, os baixíssimos níveis de desemprego e as elevadas remunerações em países como a Alemanha ou a Suíça. Estes países apostam há décadas nos chamados cursos de aprendizagem, cujos conteúdos e formatos são influenciados significativamente pelas empresas e associações empresariais e incluem uma componente significativa de experiência profissional.