Testemunho

“Desisti da advocacia”, diz Regina Charumar, professora e activista ambiental

Regina Charumar é professora de Direito no Instituto Superior Monitor e activista ambiental afiliada à Cooperativa Ntumbuluku.

Fale resumidamente do seu percurso académico e profissional e do sector em que trabalha actualmente.

Comecei a estudar na Beira, na Escola Primária de Macúti, que fica mesmo no bairro de Macúti, próximo à praia. Fiz lá a 5.ª classe, na época era mesmo escola primária. Depois passei para a Escola do 2.º Grau do Estoril, também na Beira, e depois fui à Escola Samora Machel, à faculdade e finalmente vim parar em Maputo. Na Beira eu já trabalhava como assessora jurídica de uma empresa de extracção mineira. Mas, por motivos de força maior, tive que me mudar para Maputo e vim ao Instituto Monitor. Aqui dou aulas de Direito: Teoria Geral I, Teoria Geral II, Internacional Privado e do Ambiente, sendo esta última especialidade a minha maior paixão. O interesse pelo activismo ambiental brotou de tal forma que agora não consigo viver sem ele. Lembro-me de ter tido na disciplina de Direito do Ambiente uma professora que dava as aulas com muito entusiasmo, a aula toda tinha um sentimentalismo, uma entrega com a própria causa, e isso acabou influenciando. Acho que já tinha essa predisposição e aquilo serviu de estímulo. Ela percebeu essa capacidade em mim e viu que havia uma ambientalista naquela Regina. Lembro-me de ter-me sentado com ela na época da dissertação do mestrado e eu estava indecisa no tema: um era na área criminal e outro na área do ambiente e eu falei com ela pedindo-lhe sugestões. Porquê essa dúvida, foi o que ela me disse,e então perguntou-me qual era o tema que o meu coração mandava escrever. Eu respondi-lhe que queria escrever sobre responsabilidade civil por danos ambientais e ela simplesmente disse “tu consegues e é essa a tua área”. A partir daí comecei a trabalhar com questões ambientais, fui escrevendo e tive depois o professor Carlos Serra como meu supervisor na dissertação, que foi também uma alavanca. Dito isto, por mais que não tivesse tanta vontade, tinha duas pessoas a prestarem orientação e a influenciarem. Acabei desse modo me tornando ambientalista. Hoje trabalho nestas questões ambientais com a Ntumbuluku e os seus parceiros.

Como é que conseguiu o seu primeiro trabalho?

Estava no 2.º ano a fazer um estágio num escritório de advocacia e durante o estágio o supervisor e patrono percebeu o meu potencial e estava uma empresa à procura de um assessor jurídico, que pudesse olhar  por todo o processualismo na extracção mineira, a empresa ainda estava na fase da constituição. O supervisor falou-me dessa oportunidade e eu não podia exercer como advogada mas era técnica jurídica do IPAJ (Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica). Eu fui ter com o responsável dessa empresa e ele disse-me que não precisavam de um advogado, propriamente, mas de alguém que pudesse encaminhar os processos. Foi dessa forma que comecei. Eu continuei a trabalhar nas duas empresas. E devo isso ao meu supervisor, que compreendeu a importância desse novo trabalho. Eu estava num estágio não remunerado e tinha necessidades financeiras por salvaguardar.

Em que é que consiste o seu dia-a-dia de trabalho?

A minha rotina é extremamente complicada. Acordo às 5h30 e faço o trajecto à Monitor (Instituto Superior Monitor) onde inicio às 7h00, embora o horário de entrada seja às 8h00, entro mais cedo precisamente para dar vazão ao meu trabalho diário. Depois vou a outras instituições onde dou aulas e faços trabalho para a Ntumbuluku. A minha rotina termina normalmente às 20h00, 21h00.

Que diz das suas expectativas como estudante e aquilo que encontrou no mercado de trabalho?

Infelizmente o Direito não é um desses cursos práticos onde facilmente pode-se enveredar pelo caminho do empreendedorismo. A área de direito exige que se tenha um escritório de advocacia, por exemplo. O estudante de direito já acha que vai singrar na vida, que quando terminar o curso vai ser um advogado de renome. Isto é um processo longo e às vezes frustrante, pois o que acontece é que depois de terminar o curso inicia uma etapa nova, que consideramos a mais difícil. Faz-se o curso e seguem-se os estágios. Os estágios complementam o curso. Se se vai pela via de advocacia ter-se-á que ter um ou dois anos a fazer o estágio na Ordem dos Advogados ou no IPAJ e neste tempo o candidato a advogado precisa ganhar crédito, reconhecimento, ele precisa que as pessoas o tenham como referência, é vender uma imagem, um serviço, conquistar o público. É um marketing diário que não é fácil. Tanto que é normal que estudantes se juntem na fase da licenciatura para abrir escritórios mas como é um processo longo e terrível, que nem todos conseguem ter resultados positivos. Diferente seria em tratando-se, por exemplo, de um engenheiro informático, que depois de terminar o curso pode ter espaço e fazer os seus trabalhos. Um advogado precisa primeiro de estagiar e a partir daí ganhar o reconhecimento de que necessita. Eu comecei o meu estágio pois queria ser advogada mas justamente por causa desses entraves, principalmente quando se está a fazer o estágio, é muito burocrático, é muito complexo, que quando não se tem firmeza e vontade a pessoa acaba por desistir. Eu desisti da advocacia. Eu precisava também de alguma recompensa financeira, estava arcando com algumas responsabilidades e precisava de ter a finanças garantidas, sendo que durante o estágio, por exemplo no IPAJ, não era remunerada. Assumi a docência e abracei o activismo ambiental, que não é remunerado mas dá uma compensação porque faço o que gosto.

Pode recordar um momento desafiante no seu percurso profissional?

Na docência é sempre um desafio porque lidas com pessoas, com público, acima de tudo lidar com estudantes, com as suas características cada um, o docente faz o papel de mediador, de equilíbrio na relação entre os estudantes, e a cada aula o professor tem que passar uma certa segurança, estabilidade, o desafio é diário. O activismo ambiental também exige isso. Para que a pessoa esteja ligada, consciente, às questões ambientais, é um processo que exige paciência e para tal é preciso ir conquistando esse interesse. Só vemos essa batalha ganha quando vemos que a pessoa mudou de comportamento. É um desafio de toda a escola.

Que momentos na sua carreira gostaria de lembrar?

Pela minha idade, que não é pouco, há estereótipos, padrões em relação aos professores, as pessoas têm já imagens sobre o que seja um professor, e isto tem sido um entrave para mim, algo que tenho que ultrapassar todos os dias. Facilmente confundem-me nas escadas, nos corredores, como estudantes. Isso acontece tanto na docência como no activismo ambiental. As pessoas não estão habituadas a conhecer ambientalistas numa figura que não seja a masculina. Todos os dias preciso de explicar. Eu consigo ser mulher e ambientalista. Um momento engraçado que eu gostava de lembrar é eu ter chegado a uma sala de aulas, numa instituição de ensino, e bater à porta e um estudante dizer: “Estamos numa reunião entre colegas. O que é que queres?”. Eu perguntei se eles não teriam naquela altura uma aula de Direito do Ambiente. Ele respondeu-me que sim mas que estavam à espera do docente. Respondi-lhe que era a docente e ele ficou espantado e virou-se para os colegas, que confirmaram que eu era a docente. Estes momentos acontecem todos os anos. Antes de me preparar para a aula tenho de me preparar para assumir o papel de professora, do portão à sala de aulas.

Exerce alguma função de direcção nesta instituição?

Coordeno uma plataforma virtual de discussão e divulgação de direitos. Vemos a legislação e procuramos que as pessoas sejam conhecedoras dos seus direitos e deveres.

Quais são os maiores conseguimentos na sua carreira?

Retornaria à questão que mencionei – fazer o que se gosta. Quando se faz o que se gosta, o facto de estares a leccionar e teres este reconhecimento pelos estudantes, olhar para o estudante e perceber que ele está a compreender a matéria, e ter um feedback positivo do estudante, isto é uma recompensa diária. No activismo ambiental fazer com que uma criança compreenda que não pode deixar o lixo no chão, ou que um adulto, que é mais complicado, tenha uma mudança de consciência, perceber que há um crescimento de seguidores desta área ambiental, é um resultado positivo e compensador. Isso nós temos todos os dias.Compensa e vale a pena trabalhar sempre.

Qual é a sua visão para o futuro do sector onde trabalha?

No activismo ambiental há cada vez mais uma mudança de mentalidades, para melhor. Ser ambientalista agora parece estar na moda e há alguns anos pouca gente trabalhava como activista. Hoje encontras facilmente pessoas apaixonadas e isto tende a crescer. Quero acreditar que daqui a alguns anos teremos menos problemas ambientais, que teremos menos lixo nas ruas, que teremos passeios, mais árvores, enfim, um mundo mais sustentável.

Que características considera fundamentais para um profissional na sua área?

É preciso gostar do que se faz. Considero isso a primeira regra: gostar do que fazes, ter paixão. No meu caso, só assim consigo trabalhar na docência e como ambientalista, o que acontece só se tiveres essa vontade. Podemos ser activistas nas salas de aula, o docente pode exercer esse papel. Em geral, garra, entrega, vontade e gostares do que fazes.

Que recomendações daria a um jovem estudante, que suscitassem nele o interesse pela sua área?

Sou suspeita para falar disso, pois acredito que todas as áreas deviam ter a disciplina de Direito como parte dos seus programas, como eu gostava que acontecesse com a Medicina, dotar os estudantes de técnicas de primeiros socorros, por exemplo. Mas porquê  é que um estudante seguiria direito? Porque gosta, porque tem alguma inclinação, e segundo porque direito é tudo, diria assim, qualquer passo que se dê na vida exige que conheçamos um direito e um dever. Conhecer o direito é bom para a vivência, para o dia-a-dia, para o que ele vai fazer, para o que acontecer no futuro.